Trabalho infantil no futebol: como o incêndio no Ninho do Urubu nos ensina sobre direitos de jovens atletas

Incêndio no Ninho do Urubu deixou 10 adolescentes mortos e outros três feridos.
Incêndio no Ninho do Urubu deixou 10 adolescentes mortos e outros três feridos. / Mauricio Almeida/Am Press & Images/Gazeta Press
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Edson Arantes do Nascimento, conhecido mundialmente como Rei Pelé, não era um grande aficionado da vida escolar. Aliás, quase não há registros sobre as formações educacionais do jogador. Histórias semelhantes não são raras no esporte, sobretudo nas décadas passadas: atletas promissores deixavam seus respectivos colégios para entrar, de vez, no cenário esportivo.

Abandonando a infância de Pelé e retornando aos dias atuais, vislumbramos um outro cenário sob olhos de Kai Havertz, nome responsável pelo gol que deu o título da Champions League ao Chelsea. Quando o meio-campista tinha 17 anos e defendia as cores do Bayer Leverkusen, da Alemanha, ele perdeu um jogo decisivo da Liga dos Campeões em razão de uma prova.

Kai Havertz Seleção Alemã Chelsea Trabalho Infantil
O alemão é um dos jovens mais promissores da geração. / Lars Baron/Getty Images

Longe de ser um mero acaso, as diferentes posturas dos jogadores refletem, além de tempos distintos, circunstâncias legais que se transformaram no decorrer dos anos. Por exemplo, atualmente, no Brasil, atletas adolescentes são proibidos de qualquer prática profissional antes dos 14 anos.

Apesar de punições cabíveis, os dilemas que cercam o trabalho infantil são pouco discutidos no meio esportivo. Para Luísa Carvalho Rodrigues, procuradora do Trabalho, as ações que visam assegurar os direitos de crianças e adolescentes não refletem, necessariamente, no entendimento da causa por parte das instituições esportivas.

"A evasão escolar tem sido cada vez mais combatida e acompanhada pela rede de proteção da infância e juventude, com encaminhamento da situação pelas escolas, Conselho Tutelar e demais órgãos envolvidos e competentes. Isso, no entanto, não significa que os clubes adquiriram consciência da problemática. A prioridade permanece sendo a prática esportiva, o futebol. Então, ainda que não se verifique tanto o abandono dos estudos e evasão escolar, há muitos casos de escolas de fachada, em condições precárias, ou mesmo de baixo rendimento e desenvolvimento escolar", ressalta a coordenadora do Grupo de Trabalho Atletas Mirins e gerente do Projeto Resgate à Infância.

Com relação ao papel dos times, Luísa destaca que, normalmente, pouco suporte é oferecido: "São raros os clubes de futebol que contam com profissionais de acompanhamento e orientação pedagógica dos(as) alojados(as)", afirma. "Além disso, a maioria dos centros de treinamento e alojamento não tem qualquer local para realização das tarefas escolares e estudo, o que é também bastante revelador do descaso", completa.

A conta fecha?

Rotina intensa de treinamentos, viagens, múltiplas competições, partidas que terminam perto da madrugada... É possível ser um jovem atleta profissional e manter a qualidade nos estudos? O desafio de equilibrar as duas instâncias, segundo a procuradora, normalmente resulta em um desenvolvimento educacional prejudicado.

"O ritmo de treinamentos, deslocamentos, jogos e campeonatos do futebol profissional impedem a frequência à escola e, por consequência, o rendimento escolar"

Luísa Carvalho ao 90Min

Diante da ainda escassa discussão sobre o problema, o Ministério Público do Trabalho (MPT) lançou a campanha Atletas Adolescentes - Dignidade É Nosso Esporte. Focada na conscientização, sensibilização e engajamento social, a ação visa mostrar que a atividade esportiva precisa ser entendida como trabalho e, por consequência, regida por legislações específicas.

"Muitas vezes não se enxerga na prática esportiva uma profissão, ainda que assim seja exercida e demande o cumprimento de diversos requisitos legais, inclusive idade mínima, para que seja um trabalho digno e respeitadas as condições de pessoas ainda em desenvolvimento", aponta a procuradora.

Ângelo Santos Brasileirão
Ângelo, 16 anos, é um dos jogador mais jovens do Brasileirão Série A. / NATACHA PISARENKO/Getty Images

Ela também evidencia a necessária tomada de consciência sobre questões legais relacionadas ao tema: "É importante que as pessoas tomem conhecimento sobre a legislação de erradicação do trabalho infantil e suas razões e fundamentos; sobre os malefícios do trabalho infantil e prejuízos à saúde das crianças e adolescentes; sobre as alternativas existentes para a inserção no mundo do trabalho de forma legal e protegida, com a garantia de direitos e cumprimento das leis".

Inquéritos e vereditos

Buscando entender melhor sobre as demandas judiciais do assunto, entramos em contato com Chyntia Barcellos, advogada especialista em Direito das Famílias e Sucessões. Segundo ela, uma série de requisitos devem ser cumpridos quando se discute atividades trabalhistas de crianças e adolescentes entre 14 e 16 anos: "Esses jovens não podem exercer atividades noturnas, perigosas ou que estejam na Lista TIP, que elenca as piores formas de trabalho infantil".

Barcellos também comenta sobre o envolvimento de grandes entidades: "A legislação se aperfeiçoou para proteger crianças e adolescentes e isso é inaugurado com a Constituição Federal em 1988 e, em 1990 com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil. De lá para cá, órgãos como o Ministério Público do Trabalho, a Justiça do Trabalho e os órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização das Nações Unidas (ONU) se uniram para combater o trabalho infantil", conclui.

Mesmo diante de sanções mais severas, o ocorrido do dia 8 de janeiro de 2019 deixa um importante alerta. À época, um incêndio no Centro de Treinamento George Helal, conhecido como Ninho do Urubu, deixou 10 adolescentes mortos e outros três feridos. Na ocasião, investigações revelaram que, nove meses antes, o Flamengo havia sido avisado sobre os problemas elétricos e riscos à segurança no alojamento.

Assim, instituições esportivas precisam oferecer aos seus jovens talentos o suporte necessário para um desenvolvimento educacional satisfatório, além de resguardar os demais direitos estabelecidos por lei. O futebol, enquanto prática trabalhista e motor de transformações sociais, não pode se abster de uma luta tão importante. Afinal, estamos falando sobre vidas.


Neste sábado, 12 de junho, celebra-se o Dia Mundial contra o Trabalho Infantil. Para conhecer mais sobre a campanha mencionada na reportagem, clique aqui.