Identidade, Maradona e resistência: como o Napoli se tornou um dos melhores e mais regulares clubes da Itália

De Maradona à Kvara, Napoli sempre se reinventa e compete
De Maradona à Kvara, Napoli sempre se reinventa e compete / Arte: Eduardo Fricks
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A 227 quilômetros da capital Roma, na região da Campânia, sul da Itália, está Nápoles. Cidade de castelos, centenas de varais estendidos pelas ruas, clima mediterrâneo, pizza, histórico de máfias, Maradona e da Società Sportiva Calcio Napoli. Fundado oficialmente em 1926, o clube eternizou Dieguito no País da Bota.

Nápoles respira Maradona. Ligação tão forte talvez não seja vista nem nas próprias ruas de Buenos Aires. Este que vos escreve promete fazer o teste na próxima década para verificar a afirmação. Mas, antes de chegar ao genio del fútbol mundial e posteriormente ao sucesso dos dias atuais, precisamos voltar um pouco.


Ciao, Napoli: o nascimento

A fundação do Napoli como conhecemos hoje aconteceu em 1926. Mas as origens datam de 1905, ano em que o marinheiro inglês William Poths e seu associado Hector M. Bayon idealizaram o Naples Foot-Ball & Cricket. Nos primórdios, a agremiação sequer podia participar do Campeonato Italiano, à época restrito aos times do norte.

Em 1912, o grupo de estrangeiros do clube se separou para formar a Internazionale Napoli. Tínhamos, então, duas equipes diferentes da mesma cidade, que, na campanha 1912/13, conseguiram o direito de disputar o Italiano. A caminhada até o sucesso, porém, ainda seria tortuosa e repleta de idas e vindas.

Pouco depois do término da Primeira Guerra Mundial, as duas instituições se uniram novamente para formar o Foot-Ball Club Internazionale-Naples, abreviado de FBC Internaples. Foi somente em 1964 que a nomenclatura Società Sportiva Calcio Napoli passou a ser adotada. Bem, se você leu até aqui, deu para notar que os rumos da agremiação não serão nada lineares, certo?

Napoli
História do Napoli é repleta de idas e vindas / Dean Mouhtaropoulos/GettyImages

Mas, no meio de tantas transformações, uma constante: a rixa geográfica e ideológica entre norte e sul da Itália. Em resumo - bem resumido mesmo -, o norte historicamente se consolidou como região industrial e economicamente bem-sucedida. Ao sul, de raízes agrárias, restou o oposto. Não por acaso, até os dias atuais as cidades do norte são as preferidas por quem busca determinados tipos de trabalho.

As nuances do antagonismo na verdade remontam épocas ainda mais distantes, mais precisamente ao período das guerras que culminaram na unificação italiana, Mas, para nosso propósito neste material, basta que você, leitor, entenda de onde surgiu tamanho preconceito com os cidadãos de Nápoles e outras cidades da região. Não é nada difícil perceber que a questão laboral está no centro de tudo, certo?

Uma parte dos habitantes do norte - e aqui nós realmente não devemos generalizar - considera que os sulistas são menos desenvolvidos e não apreciam o trabalho. Além disso, a antiga relação do local com as máfias "auxiliou" na consolidação do estereótipo de que as ruas dos municípios do sul são mais violentas, desiguais e bagunçadas.

A questão idiomática também está presente no bingo dos preconceitos. Em Nápoles e em outras regiões da Itália se fala o napolitano, que difere da língua italiana tradicional em alguns pontos. A existência do dialeto pressupõe duas leituras: a) o afastamento com relação aos não-falantes; e b) a sensação de identidade e pertencimento entre os falantes.

Diego Maradona, Napoli
A chegada de Maradona mudou os rumos do Napoli / Etsuo Hara/GettyImages

E aqui está talvez uma das principais marcas dos napolitanos: o pertencimento, as raízes. Se parte da Itália insiste em vê-los como menores, dane-se. A Nápoles o que é de Nápoles. Por isso, quando Corrado Ferlaino garantiu a contratação de Diego Armando Maradona Franco, era como se Deus estivesse abençoando Napoli com as próprias mãos.

Maradona.

Maradona poderia renascer com a mesma habilidade em pelo menos cinco gerações diferentes e provavelmente ainda não haveria nenhum time à sua altura. Mas o que Nápoles ofereceu, bastou. A coroação de D10S veio dois anos depois da sua chegada ao Calcio: em 1986, na Copa do Mundo. Foi depois do Mundial do México que a Itália viu de perto a melhor versão do meia-atacante.

Foram dois scudettos, uma Copa UEFA, uma Copa da Itália e uma Supercopa da Itália. Muito além de títulos e estatísticas, Maradona, ao lado de Giordano e Careca, compôs um dos trios mais emblemáticos da futebol: o MaGiCa. Depois de lutar pelo simples direito de competir, o Napoli enfim parecia ter tudo.

Ao 90Min Brasil, nosso parceiro italiano Alessandro Eremiti, diretamente de Londres, nos contou um pouco da relação entre instituição e personagem: "Em Napoli, Maradona é Deus. E de certa forma, isso mudou a percepção do clube, porque se pensarmos no Napoli é impossível não pensar em Maradona", pontuou o head de conteúdo.

A simbiose entre as partes era tão concreta que, em 1990, às vésperas da semifinal da Copa do Mundo entre Itália e Argentina, Maradona pediu que os napolitanos torcessem pelos hermanos. "Durante 364 dias do ano, vocês são considerados pelo resto do país como estrangeiros e, hoje, têm de fazer o que eles querem, torcendo pela seleção italiana", destacou o camisa 10.

"Eu, por outro lado, sou napolitano durante os 365 dias do ano", completou. No estádio San Paolo - hoje chamado de Diego Armando Maradona -, em Nápoles, Itália e Argentina empataram em 1 a 1 no tempo regulamentar. Salvatore Schillaci e Claudio Caniggia anotaram os gols. Da marca do cal, os sul-americanos venceram.

Diego Armando Maradona
Itália x Argentina, Copa de 1990 / Alessandro Sabattini/GettyImages

Maradona deixou o Napoli em 1991. Era o início da fase mais turbulenta da sua carreira. Herói de tantas conquistas, o gênio testou positivo em um exame que verificava vestígios de cocaína. Foram 259 partidas e 115 gols com a inigualável camisa azul. A queda do argentino representou o declínio de um clube que havia perdido seu milagre.

Um pontapé em direção ao mundo

Não há muitas boas recordações para a torcida napolitana na década de 90. Porém, nada se compara ao caos do início dos anos 2000. Em 2004, o Tribunal de Comércio de Nápoles decretou a falência do clube. À época, a dívida da agremiação era de cerca de 70 milhões de euros. Foi aí que Aurelio De Laurentiis entrou em cena.

Ainda em 2004, o cineasta romano comprou o time e o refundou como Napoli Soccer - a priori, a equipe não podia utilizar a nomenclatura antiga, retomada apenas em 2006. Era hora de recomeçar. Em três anos, a instituição saiu da terceira divisão e voltou à elite. A vaga entre os 20 melhores do país, contudo, não significou estagnação.

Luciano Spalletti, Aurelio De Laurentiis e Lorenzo Insigne
De Laurentiis com Insigne, um dos maiores ídolos da história recente do Napoli / Francesco Pecoraro/GettyImages

Dentro das quatro linhas, as novidades vieram aos montes: Edinson Cavani, os goleiro Morgan De Sanctis e Pepe Reina, Jorginho, Gonzalo Higuaín e muitos outros. Fora de campo, a revolução nunca parou. Rasgando as barreiras culturais impostas pelo preconceito histórico e regional, o Napoli se consolidou entre os times mais populares do Calcio.

"Apesar de todos os preconceitos em torno do Napoli e da sua gente, o clube é o 4º na Itália em número de torcedores", explica Eremiti. Juventus, Milan e Inter de Milão estão posicionadas à frente do Napoli no ranking do portal Calcio e Finanza. "A rivalidade infelizmente existe, mas Nápoles ainda é uma das cidades mais visitadas da Itália", completa.

A popularidade impulsionou ações que rompem as barreiras do País da Bota. Em novembro deste ano, por exemplo, a agremiação lançou, pela segunda temporada consecutiva, uma camisa especial em comemoração ao Halloween. Em 2021, a grife italiana Giorgio Armani foi a responsável pela produção dos uniformes da campanha.

Também no ano passado, os napolitanos presentearam seus torcedores com o lançamento de uma camisa em colaboração com a grife Marcelo Burlon County of Milan. Em comunicado, o clube enalteceu "a internacionalidade de Nápoles e de seu time de futebol por meio da visão e do toque criativo de Marcelo Burlon".

Singular em história, trajetória e existência, o Napoli infelizmente não será capaz de exterminar a discriminação que emana das arquibancadas e das ruas italianas. Mas isso não o impede de seguir respondendo da melhor maneira possível: com crescimento econômico e esportivo ao lado de uma torcida que faz parte da identidade napolitana.

O acesso e a "primeira geração" de novos craques

Sob nova direção em seus bastidores, o Napoli precisava dar o primeiro passo rumo à retomada de protagonismo na Itália: retornar ao primeiro pelotão do futebol nacional, a Serie A Italiana. Com um elenco "operário" comandado por Edoardo Reja, o time partenopei conquistou o acesso à elite em 2006/07, terminando a Serie B daquele ano na segunda posição, com 79 pontos conquistados.

O retorno à primeira divisão culminou na volta do prestígio e do poder de barganha do clube de San Paolo no mercado de transferências, possibilitando a contratação de jogadores renomados como o meia Manuele Blasi e o centroavante Marcelo Zalayeta, ambos adquiridos junto à rival Juventus. Mas seriam os pouco conhecidos Marek Hamsik, meia de 19 anos, e Ezequiel Lavezzi, atacante de 22 anos, que deixariam sua marca com a camisa napolitana.

Napoli's forward Ezequiel Ivan Lavezzi (
Ezequiel Lavezzi foi contratado para a temporada 2007/08 / ALBERTO PIZZOLI/GettyImages

Contratado junto ao San Lorenzo, Lavezzi passaria cinco temporadas no clube italiano, anotando 48 gols e 57 assistências, antes de se transferir ao PSG em 2012. Marek Hamsik, aposta contratada em meados de 2007 junto ao pequeno Brescia, se consagraria como a maior referência contemporânea do clube napolitano: 12 temporadas dedicadas ao clube, com 520 partidas disputadas, 121 gols e 103 assistências.

Dois jogadores que se transformariam em símbolos do projeto de reconstrução napolitano, mas, mais do que isso, dois jogadores que abraçariam a camisa gli azurri e rapidamente entenderiam que ser Napoli é diferente: mais que um profissional do clube, você se torna um torcedor dele. Você passa a pertencer a algo maior.

Com Lavezzi e Hamsik protagonistas e um letal recém-chegado chamado Edinson Cavani - contratado via empréstimo junto ao Palermo -, o clube de San Paolo romperia os anos 2010 com um grande feito: a vaga direta ao maior torneio de clubes do mundo, a Champions League.

Edison Cavani
Cavani fechou com o Napoli em 2010, após anos de destaque no Palermo / Paolo Bruno/GettyImages

Segunda geração, Sarri e a "quase glória"

De volta ao principal palco do futebol mundial, o Napoli continuou aumentando os investimentos: adquiriu Cavani em definitivo, trouxe Inler, Eduardo Vargas, Dzemaili e Goran Pandev, em uma janela de transferências bastante arrojada para seus padrões. E não tardou para que o grito de campeão, entalado na garganta por longos anos, fosse finalmente liberto: em 2011/12, com Cavani inspirado, os Partenopei conquistaram a Coppa Italia de forma épica, batendo a arquirrival Juventus na final.

Na Serie A Italiana, no entanto, o Napoli experimentaria sensações contrastantes: se tornou figurinha carimbada entre os primeiros colocados, mas sem conseguir romper com a soberania juventina. Vice com Walter Mazzarri em 2012/13 e terceiro colocado com Rafa Benítez em 2013/14, o clube de San Paolo chocou o mundo ao anunciar o "desconhecido" Maurizio Sarri em 2015, após Benítez receber uma proposta do Real Madrid.

Maurizio Sarri
Sarri chegou ao Napoli em 2015 / Francesco Pecoraro/GettyImages

A busca por um treinador com ideias revolucionárias, mas com currículo limitado a bons trabalhos em divisões inferiores do futebol italiano, pareceu um "passo atrás" no projeto napolitano de atingir o tão sonhado topo do país. Contudo, seria justamente com Sarri, um treinador identitário e corajoso - imagem e semelhança do Napoli em sua existência de resistência -, que o clube de San Paolo chegaria mais perto da glória do Scudetto.

Já com novas referências em seu elenco - Allan, Jorginho, Callejón, Dries Mertens e principalmente Lorenzo Insigne -, o Napoli definiu seu DNA e se estabeleceu como um time vertical que não temia ninguém, capaz de dominar qualquer rival na Itália. Em 2016/17, encantou o mundo por sua explosão ofensiva, anotando incríveis 94 gols em 38 rodadas da Serie A Italiana. O rolo compressor napolitano ficou marcado na memória do torcedor, mas foi insuficiente para derrubar a solidez da rival Juventus.

Em 2017/18, ano que esteve mais próximo de conquistar o Calcio, o time Gli Azzurri liderou o campeonato por longas rodadas, sofrendo sua primeira derrota somente na 15ª rodada. E foi justo para a Juventus, que viria a ser campeã nacional com quatro pontos de frente em relação ao time napolitano. Mais uma vez, o Napoli perdia terreno no terço final da temporada, exato momento em que os campeões são "moldados".

Lorenzo Insigne
Napoli chegou perto, mas não conseguiu destronar a Juve em 2017/18 / Francesco Pecoraro/GettyImages

"Para finalmente conquistar o que merece, eles precisam lidar com a pressão natural que a reta final de temporada carrega. Quando você não ganha por muito tempo e seus fãs são tão apaixonados, às vezes você acaba sendo esmagado pela pressão", apontou Eremiti.

Apesar do sabor amargo, a sensação contínua do "quase" não esmoreceria o sentimento e a simbiose entre arquibancada e clube: a cidade de Nápoles seguiu acreditando e abraçando seu grande amor, gesto que prova como pertencimento e permanência transcendem qualquer troféu.

Ciclos se encerram, mas o Napoli se reinventa

O futebol, como conhecemos, é feito de ciclos. O sentimento do torcedor pode ser imutável e a atemporal, mas os jogadores em campo são passageiros, e mesmo os mais identificados com o clube, uma hora se despedem em busca de novos desafios. A janela de transferências verão de 2021/22 foi bastante marcante para o Napoli neste sentido, com o clube dando adeus a alguns de seus símbolos recentes: Koulibaly, Mertens e Insigne deixaram Nápoles, abrindo passagem para o surgimento e a ascensão de novos personagens.

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Mertens e Insigne se despediram do Napoli no último verão / CARLO HERMANN/GettyImages

Um bom trabalho de scout aliado a uma ida certeira ao mercado impediu que o Napoli se ressentisse esportivamente do adeus de seus ídolos, com os recém-chegados oxigenando os corredores do San Paolo e não demorando nada para conquistar a torcida Gli Azzurri. Raspadori, Min-jae Kim, Giovanni Simeone e principalmente Khvicha Kvaratskhelia, carinhosamente apelidado de "Kvaradona", são a prova de que os Partenopei sabem se reinventar como ninguém.

"As novas contratações se encaixam perfeitamente na ideia de Spalletti e Kvara foi uma surpresa para todos. Eles têm um elenco mais profundo e dinâmico, com jogadores importantes como Ndombelé, Simeone, Raspadori, Politano e Olivera. Spalletti continua trabalhando e está espalhando sua filosofia de futebol dentro do time", analisou Eremiti.

Alex Meret, Giacomo Raspadori, Khvicha Kvaratskhelia and Kim...
Raspadori, Kvaratskhelia e Kim Min-jae são titulares absolutos no Napoli / Insidefoto/GettyImages

Com a Juventus vivendo dura entressafra e os rivais de Milão perdendo força em relação aos anos anteriores, o Napoli tem mais uma grande oportunidade de repetir os anos 80 e voltar a se consagrar campeão da Itália. O primeiro terço da temporada já foi, e o que vimos até aqui da equipe de Spalletti foi pura arte: 12 vitórias e dois empates em 14 partidas do Calcio, 34 gols marcados e o merecido status de melhor time do continente neste início de 2022/23: "O Napoli tem, no momento, o time em melhor forma na Europa, para ser 100% honesto", afirmou Klopp, treinador do Liverpool, antes de duelo entre eles pela Champions.

Se o fim da temporada reservará a consagração deste renovado e empolgante grupo napolitano, ainda não sabemos. O que podemos cravar é que o grande orgulho da cidade de Nápoles, ano após ano, continua nos surpreendendo por sua capacidade de seguir resistindo.