Opinião: Sobre ser um Tricolor secular

Torcida do Fluminense vive 2023 de alegrias e sonhos realizados
Torcida do Fluminense vive 2023 de alegrias e sonhos realizados / Eurasia Sport Images/GettyImages
facebooktwitterreddit

Sempre me considerei ateu. Mais que ateu, antirreligioso. Não sou nem nunca fui contra quem é religioso, mas, desde que me conheço por gente pensante, lembro de ser contra a instituição “religião”. Qualquer religião. Devo ser um dos únicos Tricolores a não cantar “À benção João de Deus”, mesmo sabendo que a música é muito mais folclórica e supersticiosa do que religiosa, pelo menos para a nossa torcida. Mas não é isso que vim aqui dividir com vocês hoje – estou aqui pra dividir que aprendi que pode ser que na verdade eu não seja ateu, apesar de continuar sendo antirreligioso. Cacete, que brisa, eu sei. O que isso tem a ver com uma página de esportes? Muito mais do que pode parecer.

Calma, explico. Estou lendo “21 Lições para o Século 21” do excelente Yuval Noah Harari e os capítulos 13 (Deus) e 14 (Secularismo) calaram fundo no meu pensamento. Ele descreve o código de ética Secular como sendo “um código que abraça os valores da verdade, compaixão, igualdade, liberdade, coragem e responsabilidade”. Todas as religiões do mundo pregam a maioria ou todos esses mesmos valores, mas nenhuma religião do mundo verdadeiramente abraça esses mesmos valores naquilo que faz. E ler isso fez muito sentido pra mim. Eu sempre me senti confrontado por acreditar sim em algo maior do que o que conhecemos, mas ao mesmo tempo nunca ter aceito as regras, a falsa moral e a hipocrisia de todas as religiões que já conheci. Daí, sempre me considerei ateu. Mas “ser ateu” muitas vezes me soou vazio, negacionista, algo como “sou isso para não ser aquilo”, e nunca conseguiu traduzir de fato a complexidade da minha crença em algo maior, não-terreno, sem me encaixar na manipulação das instituições religiosas criadas, chefiadas e manipuladas por homens em busca de poder.

Se tem algo que eu acredito, é na força da energia que você coloca no mundo. Principalmente quando essa energia é coletiva e, mais ainda, quando ela é verdadeira e traduz aquilo que o grupo de fato representa. Acabei de assistir ao especial do Fluminense campeão da Libertadores. Demorei de propósito, acho que não estava pronto pra assisti-lo assim, inteiro, quase 2h, focado, sem distrações. Já tinha visto todos os trechos possíveis e imagináveis, assistido setecentas vezes os lances da final, os gols da campanha, as entrevistas, etc etc. Mas o documentário inteiro ficou pra hoje, dia em que meus dois moleques completaram uma semana de vida. Meus moleques me acompanharam em Porto Alegre e no Maracanã – em espírito, claro, já que ainda estavam concentrados no CT da barriga da mamãe. Nos momentos de aperto (e foram muitos), eles foram dois zagueiros tirando os novecentos e quinze cruzamentos que o Boca Juniors fez pra dentro da nossa área naquele segundo tempo da prorrogação. Foi por eles que eu entrei num avião na 3ª, fui pra outro continente (não moro mais no Brasil), vi o jogo em POA na 4ª e voltei pra casa na 5ª, com a classificação pra Final na mochila e uma gripe que me derrubou por uma semana (valeu demais a pena).

Internacional v Fluminense: Semi-final - Copa CONMEBOL Libertadores 2023
Torcida do Fluminense lotou seu setor no Beira-Rio, na semifinal da Libertadores / Pedro H. Tesch/GettyImages

Por eles e pela minha filha mais velha, nascida em março de 2011, e que também estava comigo – em espírito – naquele duríssimo Fluminense x Guarani de 2010 no Engenhão (e, lógico, no dia 4/11). Conversei com ela lá em 2010, conversei com eles três agora no dia 4 de novembro. Mentalizei, pedi aquela força, expliquei a importância dos momentos (tanto em 2010 quanto agora), falei pros três o quanto aquilo era importante pra gente, pra nossa família, pra nossa torcida, e, pronto. Impossível um ateu acreditar tanto na força do universo quanto eu acreditei durante dois jogos e durante tantos outros jogos. E não é dizer que sempre que acreditei deu certo, claro que não. Mas posso sim dizer que sempre que deu certo eu acreditei pra cacete, tive fé pra cacete, vibrei positivo pra cacete.

O torcedor Tricolor não pode se dizer ateu. Nossa história é Sobrenatural demais para ser algo só desse mundo, só fruto de equações pragmáticas. O torcedor Tricolor é, acima de tudo, um crente, e a sua religião é o Fluminense. Continuo um fervoroso antirreligioso, mas vou mudar minha definição de mim mesmo de “ateu” para “Secular”, significando que eu reconheço que tenho sim fé e que eu acredito sim em algo maior do que o que já conhecemos. Seria Deus? Não, acho que não. Pelo menos não o Deus moralista das religiões. Acredito em energia, no universo, em positividade, em fazer o bem. Acredito muito que a gente é responsável pelos nossos próprios destinos, ou, pelo menos, por como a gente encara o que vê pela frente. Acredito em verdade, compaixão, igualdade, liberdade, coragem e responsabilidade.

O que me inspirou aqui, hoje, domingo, ao assistir ao documentário da Libertadores inteirinho, de ponta a ponta, olhos rasos d’água, com um dos meus filhos dormindo no meu peito (não vou dizer qual pra não dar briga no futuro), foi o orgulho de me dar conta de que esse grupo do Fluminense que estreia amanhã no Mundial reflete bem esses mesmos valores Seculares sem perderem nunca a fé no Sobrenatural. Valores esses tão bem desenhados e defendidos pelo Fernando Diniz – não sei se o cara é religioso (acho que não), mas, mesmo se for, isso não vem ao caso. O que vem ao caso é que o Diniz, assim como o meu Pai (nossa inspiração maior na família e grande responsável pelo nosso DNA Tricolor) acredita, defende e briga todos os dias por esses mesmos valores: VERDADE, COMPAIXÃO, IGUALDADE, LIBERDADE, CORAGEM E RESPONSABILIDADE. O Diniz acredita no ser humano antes do atleta. Na solidariedade do grupo antes da vaidade individual. Na verdade da sua forma de ver o jogo, mesmo diante de bombardeios midiáticos nos momentos de baixa. Na liberdade e na alegria de se jogar futebol. Na coragem do jogo aposicional, do volante na zaga, dos quatro atacantes, mesclada com a responsabilidade do centroavante vir dar carrinho de cabeça pra tirar bola na zaga. E eu acredito nele e neles, nesse grupo.

Nino
Fluminense conquistou a América pela primeira vez em 2023 / Ricardo Moreira/GettyImages

Não sei se passamos do campeão Africano (jogo duro com certeza) e definitivamente não quero pensar na Final antes disso. Só sei que esse time, esse grupo, essa história me dá um orgulho grande de ser Tricolor. Um Tricolor Secular.

Vamos pra cima deles, sejam eles quem forem, quantos forem e de onde forem.

Coragem!

Vitória Fluminense!

Saudações Tricolores