De maneira melancólica, Vasco para no tempo e definha lentamente para desespero de sua torcida
Por Aline Ventura
#VozDoTorcedor
por João Pedro Moretzsohn, torcedor do Vasco
Já não são os vexames, apesar dos requintes de crueldade. Muito menos as manchas na centenária história. É o desgaste da imagem. Não apenas da instituição e de sua tradição, cada vez mais apequenadas e inferiorizadas. Mas sim de seu maior esteio e propósito: o torcedor vascaíno. Após décadas de descaso, maus-tratos e ingratidão contínua, o maior patrimônio do Club de Regatas Vasco da Gama se vê novamente desmerecido e desvalorizado. Ou até pior: invisível.
Os resultados colhidos na temporada 2020-21 são mais um dissabor para a coleção crescente que amarga rotineiramente a realidade do Cruzmaltino. Fundamental enxergar, no entanto, que o novo descenso - uma questão de tempo para formalizar -, não foi plantado no último ano, não surgiu com a ausência da torcida das arquibancadas e nem foi imposto pela pandemia. Ele nasce do sucateamento covarde e ininterrupto há décadas e décadas e mais décadas de uma instituição rica em patrimônio humano (sua torcida!) e em tradição, mas absolutamente miserável em visão de progresso, senso de evolução e ambição por futuro.
Irresponsavelmente soterrado em dívidas que se acumulam depois de seguidos déficits fiscais empilhados uns sobre os outros, o clube vive ainda afogado da pior sede que há neste mundo: a pelo poder. Refém de uma estrutura arcaica, de valores obsoletos e ultrapassados, perpetuados e reforçados por um estatuto secular e estagnado no tempo, o outrora Gigante da Colina, panteão do futebol brasileiro e paixão imensurável de mais de 8 milhões de cruzmaltinos, é (des)tratado como se fosse um clube de condomínio. Padece na mão de um punhado de lunáticos, pobres de espírito e de visão, que lançam de um lado a outro as emoções fundas do torcedor em prol de um cansado, inútil e desprezível jogo político de bastidores.
Alheios à evolução transformadora e gritante que atravessa o futebol, os famigerados beneméritos, remidos e conselheiros vitalícios, estandartes da velha política vascaína, guiam o clube para um colapso irreversível: o ostracismo. Sem capacidade de investir em um futuro promissor para o clube, o colocam cada ano mais distante das disputas pelos mais relevantes títulos do futebol regional, nacional e continental. A instituição é então marginalizada e atirada em um ciclo vicioso sem fim, onde as receitas se esfarelam e as dívidas se agigantam sem que haja qualquer esperança de ver a conta fechar enquanto o balanço financeiro se deteriora.
O estrangulamento das contas reflete diretamente no cenário paupérrimo dentro e fora do clube. Meses a fio de vencimentos atrasados em todas as instâncias, do artilheiro do time aos mais humildes funcionários, muitos com trajetórias cinquentenárias de serviços ao clube e cujas famílias estão em situação vulnerável e humilhante. Categorias de base sucateadas, sem condições mínimas de fomento e prospecção de talentos. Receitas penhoradas mensalmente, processos trabalhistas em profusão e cotas televisivas futuras esvaziadas adicionam ao miserável quadro de má gestão, desprezo pelo progresso e egoísmo político da patota animada dos corredores e arredores de São Januário.
No fim da linha e bem longe dos holofotes, o clube se torna insustentável economicamente e culturalmente. A Cruz de Malta vira um símbolo vintage, que cada vez mais só se escuta sobre quando falada no tempo passado. Simples entender que, sem um presente que reverbere de maneira positiva, engajada e definitiva, não haverá futuro. Não veremos mais a renovação espontânea da torcida vascaína. Ficará a rica herança passada de pai para filho. No entanto, ano após anos, esta linda tradição se esvai em significado, perdendo o sentido prático e perpetuando exclusivamente o valor afetivo. Como aquele relógio de bolso, passado de gerações dentro da família: eternamente guardado com carinho na gaveta.
Neste filme, infelizmente, a dor e o sofrimento cabem ao indefeso torcedor. Exposto aos maniqueísmos e idiossincrasias da corja que controla e subverte o clube, a torcida se entrega, se doa e se compromete como pode: custeia a construção de um centro de treinamento, se mobiliza em escala histórica para aderir os rankings de associados do clube, não nega nunca sua voz, seu suor, suas lágrimas e seu sangue pelo clube que arrebata o coração e crava nele uma cruz em vermelho. Só não vê as contrapartidas. Ao menos, só pode lembrar dos motivos para sorrir com Roberto, Edmundo, Romário, Juninho…
Metaforicamente, a outrora portentosa e garbosa nau vascaína sucumbe ao avanço do tempo. Os mastros estão envergados, as velas totalmente rotas e as amarras frouxas. O convés podre e aos pedaços, um leme empenado e uma tripulação atordoada e incompetente, testando mares à deriva. No porão, ao fundo e por baixo deste desarranjo completo, está a torcida. Com calos nas mãos e braços cansados de remar e carregar há longas temporadas o peso da tradição de uma embarcação deste porte. Incansavelmente, empurra o clube até onde haja limite para a exaustão e a para a paixão, ambas continuamente testadas. Apegada exclusivamente à fé, a torcida rema sonhando que, longe no horizonte, surgirão novamente terras dotadas de riquezas como as que um dia o Gigante costumava ancorar e atracar.